
Mia Couto: errar é biológico
"Sou escritor e cientista", costuma dizer o mais famoso literato africano contemporâneo, o moçambicano Mia Couto, de 55 anos, também dono de longo currículo como biólogo. Formado pela Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, capital de seu país, Mia divide-se entre a biologia e os livros. Seu romance Terra Sonâmbula, escrito em 1992 e lançado no Brasil pela Companhia das Letras, é uma das referências da moderna literatura africana. Suas obras já foram traduzidas para seis idiomas e publicadas em mais de 20 países.
Em 1996, ao lado de quatro amigos biólogos, Mia fundou, em Moçambique, uma empresa que realiza estudos sobre impacto ambiental. Trabalha nela até hoje. "Os maiores problemas ambientais têm a ver com a miséria", dispara o escritor, que faz críticas a ecologistas e ao racionalismo da ciência. "Sou um grande adepto do erro", poetiza.
Você foi primeiro escritor ou biólogo?
Desde muito jovem eu queria escrever. Tinha paixão pela poesia, sobretudo no começo de minha carreira, mas também sonhava em viver dentro de uma reserva, em um parque. Queria ser guia turístico, trabalhar com bichos, com grandes mamíferos. A biologia surgiu assim. Percebo nela uma linguagem própria, um caminho para a identificação dos idiomas que a natureza nos oferece para entendê-la.
E como se dá o diálogo entre ciência e literatura?
Na minha visão, ambas deveriam ser movidas pelo sabor da descoberta. Mas, infelizmente, percebo que a ciência deixou de ter essa inquietação, essa capacidade de se espantar, de inquirir. Ela foi aos poucos sendo substituída pela rotina burocrática - o cientista tornou-se um funcionário das grandes empresas. Mas ele precisa ir além. Precisa romper as estruturas e questionar as lógicas que são colocadas, mesmo se está a serviço de uma multinacional. Apenas produzir para o mercado limita a ciência, que fica restrita ao estudo de fatos isolados. O mesmo acontece com a escrita literária. Ela só tem início, de verdade, quando não está apenas contando uma história, mas transformando em causa todo o nosso passado.
Esta é a proposta que eu faço na literatura e na ciência - a de questionar. Embora os desastres causados por uma cheia na foz de um rio, por exemplo, ou mesmo o efeito estufa sejam obras da natureza, é preciso interrogar quais são as razões sociais e políticas que permitiram o surgimento de vítimas - pessoas que se alojaram em áreas de risco, que se tornaram miseráveis e sem alternativa. Em nome de salvar a natureza, "naturalizou-se" aquilo que era social, histórico. Essa é uma grande armadilha.
Você é um dos donos de uma empresa que estuda o impacto ambiental. Como conseguem evitar esse quadro?
Éramos quatro biólogos que tinham a seu favor a paixão pela profissão e a vontade de querer marcar diferença do ponto de vista da ética. Hoje, nossa empresa tem 21 consultores - historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas de recursos naturais. Nós nunca abordamos o ambiente como um conjunto de passarinhos e borboletas, e sim na sua relação com as pessoas. Dessa forma, tentamos escapar dessa armadilha, pois abordamos a questão ambiental não apenas em seu aspecto biológico, físico, mas também social.
Para mim, não existe ambiente que não seja humanizado e, por isso, muitas vezes, nossos inimigos são os próprios ecologistas fundamentalistas. Refiro-me a esse discurso de separação homem-natureza, de supervalorização dos biomas intactos. Por causa de um sapo ou de uma pequena ave age-se em detrimento do homem. É preciso resgatar a ecologia que interroga aquilo que são seus próprios pressupostos, não apenas do meio ambiente mas de tudo que está a sua volta, de sua relação com a economia, com a sociedade. É hora de resgatar uma ecologia que proponha novos modos de olhar o mundo, novas civilizações mais sustentáveis. Hoje, em nome da baleia, em nome do golfinho, o homem acaba por ser levado para o gueto. É preciso salvar os animais, as plantas, mas também devemos salvar as pessoas, dentro de um sistema de vida que não as empurre para a miséria.
O que você propõe para essa relação entre homem e ambiente?
Essa relação já se estabelece dentro de nós, na diversidade de seres que nos constituem. Quando tiro um pedaço de pele ou um fio de cabelo ou um pedaço do intestino e o ponho no microscópio, o que vejo são outros tipos de vida. Verifico que só somos seres humanos porque boa parte do que nos constitui não é humana. São milhões de vidas dentro nós. Dependemos de animais como bactérias, fungos. Quando começamos a entender isso, há alguma coisa que muda em nosso pensamento.
A ecologia e a ciência perderam esse elo com o homem?
A ciência atual é encomendada; toda a descoberta tem de se enquadrar naquilo que alguém diz que é viável. O cientista deve ser o primeiro a não permitir que a linguagem científica se torne um discurso tão imperativo.